Abrimos quando chegamos e fechamos quando vamos embora.
Os ensinamentos de uma vila de pescadores
Essa é uma divertida placa numa das lojas do local. Em outra, ao perguntar até que horas ficava aberta, a moça disse: em geral até às 19h, mas pode ser 19h30, depende. Numa terceira loja, a mensagem de boas-vindas do whatsapp era: Atendemos todos os dias das 10h às 19h se a internet da vila permitir.
Recentemente visitei uma vila de pescadores, num local bastante remoto, daqueles que te fazem ter vontade de largar tudo e ir vender miçanga na praia.
Brincadeiras à parte, a vila é mantida com uma certa dificuldade de acesso e desconfio que para preservar suas principais características: natureza quase intocada, tranquilidade, comércio local com produtos sazonais.
Até o destino são 2h de carro, sendo metade em estrada de terra, e uma travessia de canoa. Com a ajuda de uma carroça de burros ou a pé, você leva suas malas até a hospedagem.
Aí você já vê que não adianta querer carregar sua casa. Se puder levar tudo numa mochila é o melhor dos mundos. Tanto pra você quanto pros burros, diga-se de passagem. Lembrei daquela famosa pergunta: se você fosse pra uma ilha deserta e pudesse levar x itens, o que você levaria? Ou seja, do que de fato a gente realmente precisa é uma pergunta mais do que válida aqui (e que você leva pra vida).
Ao priorizar alguns itens e abrir mão de outros percebi como é interessante o peso que algumas coisas perdem simplesmente por não ter nada a se fazer a respeito. Não dá pra levar? Paciência. Não tem pra comprar? Paciência. É o que é.
Isso me lembrou um texto curtinho e excelente de Thich Nhat Hanh que li em 2016 e sempre trago comigo. Fala sobre a prática de deixar ir e a felicidade. Buda, ao notar a apreensão de um fazendeiro que perdeu dezenas de vacas e teve prejuízos em sua plantação por conta de insetos, ensina a seus monges por meio deste episódio que eles são felizes porque não têm vacas para perder.
Quanto mais coisas temos, mais para administrar, preservar e perder. Quanto mais coisas temos, mais pensamos que elas são essenciais para a nossa felicidade, que preenchem nossa vida e sem elas não sabemos quem somos. O exercício de deixar ir e soltar é libertador.
Assim, estar num local diferente do seu habitual, com ritmos e recursos bastante particulares foi como praticar esse exercício.
A vila não possui calçamento, é 100% areia (por isso burros e não carros). Então pode abandonar os sapatos e ir se acostumando com areia para todos os lados. Também precisa aceitar que não estará limpo o tempo todo e passará a agradecer a sombra das árvores que aliviam os pés do sol.
Sem iluminação pública, precisa da lanterninha do celular para se locomover à noite e lembrar o mapa de cor, já que também não pega sinal de 4G.
Na chegada, sem ter baixado o mapa (acostumada à internet fácil), precisei seguir as orientações à moda antiga: pega essa à direita, anda quatro ruas, vira à direita na placa “guest house” e depois a primeira à esquerda. E cheguei.
Em contrapartida, sem luz e sem internet você ganha tempo livre pra admirar um céu estrelado como é raro de se ver hoje em dia, já que a poluição luminosa lá é praticamente zero. Um céu desses é um espetáculo ao alcance de todos nós, mas com a enorme quantidade de luz artificial sendo projetada pela habitação humana, infelizmente não nos damos esse prazer.
Além de dificultar a observação das estrelas no céu, o excesso de luz causa efeitos nos ciclos das plantas e dos animais e afeta também o corpo humano. A luz é a grande responsável pelo ciclo circadiano (por favor leiam o livro Mude seus horários, mude sua vida do Dr. Suhas Kshirsagar).
Update - 07/12/2023: Sobre esse assunto, encontrei um artigo muito interessante: A redescoberta do ciclo circadiano (é possível traduzir a página).
Outro ponto, é que nada é muito fixo e cartesiano. Fecha tal hora, mas pode ser que feche mais tarde. Tem coisa que está no cardápio, mas não é época. O sinal do wi-fi está disponível, mas pode ser que não funcione. Não adianta ter pressa pra ser atendido, uma hora o atendente vem. Sempre vem. Pode ser que chova no meio do caminho, mas daqui a pouco para.
Aguarde e confie. Calma. Nada é tão grave que não possa ser superado. Amanhã a gente vê, se for o caso.
No início dá um nervoso, não temos controle de quase nada, mas depois dá um alívio. É como largar as malas mentais pelo caminho.
No meio de uma conversa, Alessandra, moradora local, simplesmente parou o que estava me dizendo, olhou pra cima e disse: Nossa… você viu o céu hoje? Confesso que não tinha olhado pra cima ainda. Olhei. Olhamos. Ficamos assim por algum tempo, maravilhadas e elogiosas. Depois desse respiro no presente, a conversa voltou.
Essa é uma tentativa de foto do céu em questão.
Essa simples pausa girou uma chave em mim e entendi o astral daquele lugar. Viver assim é um estado de espírito. Fiquei pensativa com tantos ensinamentos sutis que recebi:
Preciso de tudo que ando carregando?
O que está acontecendo agora?
Notei as maravilhas da natureza a minha volta?
Ando fazendo as coisas no meu tempo?
Aceito o tempo das coisas?
Quero fazer o que estou fazendo?
Deixo ir o que não me faz feliz?
Agradeço as comodidades que tenho à disposição? Sei utilizá-las com sabedoria?
Por um segundo sim, pensei que talvez fosse uma boa ideia largar tudo e me mudar pra lá. Mas isso deve ter sido apenas um chamado para aquilo que tem importância. Não vou ter o mesmo mar, o mesmo rio e provavelmente o mesmo céu de lá, mas posso trazer um pouco daquela energia pra minha vida.
Posso ser aquela pessoa de férias hoje. Aquela que acha graça do cachorro atravessando o rio de canoa, que quer se perder pelas ruas para descobrir o lugar, que experimenta sabores novos e que quer voltar pelo caminho mais longo, porém mais bonito, apenas para apreciar a vista.
Que saibamos reconhecer quando menos é mais.