Gnomo viajante em O fabuloso destino de Amélie Poulain.
Quando saímos de férias entramos no modo tá tudo certo, vambora! Nada que dê errado é o suficiente pra estragar o momento e nenhuma ideia é tão doida que não possa ser vivenciada.
Já que não sabemos se vamos voltar ali algum dia, experimentamos, enfrentamos, mudamos rotas, registramos e aprendemos. Com essa sensação de “agora ou nunca” nos abrimos. No fim, a sensação é de que o saldo foi positivo. Mesmo as furadas são histórias que adoramos contar.
De mala e cuia podemos, conseguimos e topamos tudo. Parece que estamos vivendo dentro de um post motivacional.
Claro que só o fato de não ter compromisso ou estar trabalhando já faz tudo ganhar uma nova cor. Na “vida real” não conhecemos um lugar novo todo dia, nem calculamos o nosso tempo com base nas experiências e vontades. Mas passamos o ano esperando por esse momento. O que me leva a crer que algo de errado não está certo no jeito que levamos a vida.
Onde mora aquela pessoa que sai de férias, afinal?
Cheguei à conclusão de que no dia a dia a gente tem que muita coisa e de férias não tem que nada. Além do que, fomos criados ouvindo que o trabalho deve vir antes da diversão. Mas quem deu essa importância toda pro dever? Nós. Nós que decidimos que não merecemos, que não é a hora, que talvez seja um pouco demais, que vão rir da nossa cara, que não podemos agir fora do esperado.
A vida acaba virando uma eterna espera pela mala na esteira dos acontecimentos. Quando devíamos apenas sair porta afora e viver aquilo que faz sentido.
Num texto muito interessante sobre prazeres permitidos, a Carla do Outra Cozinha disse que o prazer é o corpo nos assegurando de que era isso mesmo o que precisávamos, e que a gente vai seguir bem e vivo. Que tudo bem se permitir, pois podemos sim cair num lugar de boas escolhas.
Então, antes de nos guardamos com as malas no fundo do armário, devíamos tomar um ar e refrescar essa pessoa ousada, curiosa, divertida, leve e satisfeita que sai de férias.
Descobrir onde mora, o que come, o que gosta de fazer e então reconhecer que o prazer que sentimos quando ela dá as caras, assegura que essa é nossa melhor versão.
Os tempos são difíceis para os sonhadores.
Trânsito, reclamação de cliente, preços dos alimentos, intriga com o coleguinha, (auto) julgamento, mídias sociais, pouco tempo pra comer, necessidade de atualização profissional, aquele happy hour obrigatório… Cada um tem uma lista tensa pra chamar de sua.
Não à toa o estresse é um mal que acomete a quase todo ser social. Um estresse que nos adoece, pois nos coloca em constante estado de luta ou fuga. Os hormônios de cortisol e adrenalina vão lá no teto e seu sistema é exigido ao máximo sem pausa.
Não é fácil seguir com o coração sem ser atropelado pela dura realidade.
Ocorre que a gente é um bicho que se adapta muito facilmente às situações, mesmo as ruins. A gente se acostuma com o ritmo, com o peso, com o mal-estar e o cansaço. Passa o tempo e esquecemos que a vida nem sempre foi assim e que não precisa ser.
A situação está tão crítica que ao invés de ouvir nosso próprio corpo e mente, precisamos que os outros nos digam para nos colocarmos em primeiro lugar. Lembretes diários nas redes sociais nos dizem que merecemos uma recompensa pelas nossas conquistas, que precisamos nos perdoar perante as falhas e que não podemos deixar os sonhos morrerem.
Na era sem redes sociais, Amélie Poulain fez esse papel. Vendo seu pai extremamente afundado em recordações passadas e tendo como única distração organizar o jardim e pintar um gnomo, decide provocá-lo. Rouba o duende e o entrega a uma amiga aeromoça que tira fotos da figura nos mais variados cartões postais. Obviamente, o pai recebe as fotos e não entende nada.
Até o gnomo está vivendo a sua boa vida.
Talvez ele devesse fazer o mesmo.
Talvez nós devêssemos fazer o mesmo.
Não é fácil, confesso. A teoria sempre ganha da prática.
Mas só o fato de reconhecer que sou uma pessoa diferente quando está de férias, já é um bom começo. Sinto que não estou fadada a passar os dias pintando um gnomo e arrumando as pedrinhas no jardim. Já saí e vi uma paisagem diferente. Posso fazer as malas sem precisar sair do lugar.